quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O pão do diabo amassado

 Querido diário amassado e esquecido ao longo dos anos, só recorrendo a você para expurgar na escrita algo que nem eu sei como se explica.

Eu esqueci como se escreve. Vivi muitas histórias e fiz milhões de reflexões. Mas de lá para cá, o mundo mudou. Me perdi em outras tecnologias. Esqueci de você: papel e caneta. Amigos que sempre me acalmaram e me alegraram em todos os momentos.

O resumo da ópera é que me assentei. Me casei e descasei algumas vezes. Mas nunca pude imaginar que fosse passar por duas situações. 

1) Cuspir no prato que se come. Jamais imaginei que um dia eu seria o prato cuspido de alguém. Preciso resolver essas mágoas. Esquecer, quem sabe, porque não sou de vinganças. Nem acredito que "aqui se faz aqui se paga". Você pega na mão, ensina a caminhar quem nunca deu um passo adiante sozinho e depois, a outra pessoa abre uma disputa e corre na sua frente. Você fica para trás. Esquecida e humilhada. A lição que fica é: dedique-se a você mesmo, Jaque. Somente a você. Não se distraia nunca mais com relacionamentos, porque eles sempre acabam e o tempo não volta. O vigor para correr atrás dos sonhos fica abalado. E para se curar dessas coisas leva muito tempo e doi bastante. 

2) Empoderamento não é para sempre. Justo eu que namorei tantas vezes, ao menos umas 10, e que nunca tive dificuldade para chegar juntos. Estou há anos com uma tremenda dificuldade em declarar os meus sentimentos a quem me atrae. Sou incapaz de tomar atitudes no campo afetivo. Já conheci gente muito interessante, muito mais interessante do que todos que já conheci. Mas finjo demência. Não falo nada, embora morra de vontade de me aproximar. Tenho medo de dar nome às coisas, porque, afinal, elas passariam a existir outra vez. Só fico a espera. Mas nada acontece tampouco. Estou numa fase em que as escolhas que fiz para o meu corpo me fazem me sentir fora do padrão e com isso menos atraente. Exalo insegurança. E fico esperando. Sobro até no dark room. Estou aprendendo a lidar com um tipo de solidão que nunca senti. Pra quem já foi viciada em relacionamentos, pode ser bom. Não é ruim. Talvez seja o foco que preciso para executar os planos do tópico anterior. Consigo sentir toda a minha potência artística e, pela primeira vez, sinto que estou no controle sobre o que sou capaz de realizar com a minha arte. O preço é estar sozinha. Encontrar alguém na mesma vibe talvez seja só uma questão de sorte, daquelas que só se encontra uma vez na vida. O trem da sorte já passou por minha vida algumas vezes, mas acho que montei no vagão errado. Então seria apenas uma meia-sorte. É difícil lidar com esta sensação de incompleto, mas estou aprendo. Quem sabe um dia ainda chegue lá.

Passou. Consegui um pouco de paz. Voltar ao diário pessoal sempre ajuda na catarse. <3


terça-feira, 6 de março de 2018

não-escrever


Escrever é uma necessidade que estanca e direciona o fluxo caótico da vida. É como uma casa bagunçada em que a bagunça vai se acumulando. Se não a ordenamos, a desordem vai se sobrepondo. Se não escrevemos, o pensamento caótico vai se empilhando. E quando notamos apenas estamos sendo levadas. A minha escrita serve para organizar meu pensamento. Falar também. Mas o escrever permanece e quem não quer ter a ilusão das não efemeridades? Escrever é um diálogo comigo mesma na tentativa de explicar para mim mesma como as coisas funcionam. E, assim, uma vez que tenha conseguido me explicar, mesmo que de maneira equivocada, sinto paz. Escrever acaba com a angústia. Mas o que tem acontecido nos últimos anos é que não tenho mais conseguido escrever. Ando dominado pela angústia de não conseguir me expressar.  

quinta-feira, 31 de março de 2016

Privilégio de classe

Infelizmente o ensino público universitário ainda é um espaço colonizado, ocupado por elites. Disso todo mundo sabe.
Aqueles que estão ocupando cargos de poder, como os de diretores, reitores e até mesmo de professores, têm uma visão econômica, na maioria das vezes, privilegiada. Até tem professor com boa intenção, mas que, infelizmente, nunca sentiu na pele o que é ser pobre. O que existe é um certo imaginário sobre o que é ser pobre. E essas boas almas cristã olham para os pobres de uma forma vertical, sempre na sua posição de conforto, autorizando os pobre galgar um degrauzinho a mais.
Essas relações são todas estruturadas na ideologia da meritocracia.
O pobre que quiser "subir" na vida por meio da vida acadêmica tem que saber jogar esse jogo da meritocracia se não quiser perecer. E notem que até em materia de "esforço" a diferença de esforços é bem diferente para o pobre e para o não-pobre.
Daí quando o pobre consegue terminar o curso suadamente, consegue fazer uma pós-graduação, ele entra num mundo completamente ilusório do qual ele nunca fez parte.
Se ele tiver a sorte de conseguir uma bolsa, o pobre vai poder viver por aproximadamente 10 anos nessa ilusão. Mas, se o pobre, escolher um curso completamente fora do mercado, e uma área completamente desconhecida para o senso comum, ele vai ter que rebolar de peruca nos finais de semana pra poder pagar as contas quando a bolsa acabar.
Os cursos notamente "inúteis" como a Linguística ou qualquer um na área de artes são feitos e desenhados somente para as elites. Com um diploma de Linguística, vc não se torna um linguista. Vc vai ter que ficar dentro desse jogo meritocrático o resto da vida (na pós graduação e depois dela tb) se quiser ser um linguista!
QUEM TEM O PRIVILÉGIO DE ESTUDAR LINGUÍSTICA NO BRASIL SEM TER QUE SE PREOCUPAR COMO VAI PAGAR AS SUAS CONTAS DEPOIS QUE A BOLSA ACABAR?

Durante a minha formação, eu perdi de vista a minha pertença a classe dos pobres e vivi a ilusão de ter ascendido.
Uma vez, uma dessas vozes privilegiadas me disse que eu já não pertencia a classe proletária, que os parâmetros universitários me colocava numa classe média. Eu nunca entendi direito o que queria dizer classe média e classe proletária aqui. Desencanei por achar que seriam conceitos anacrônicos de quem pode ter o privilégios de teorizar. Mas eu vivi a ilusão dessa classe por mais de 10 anos. Sempre driblando a carteira de trabalho, tão comum entre os colegas da minha classe.
Hoje, um pouco mais distante desse pensamento colonizador, um poco mais distante da grande mesa que sempre me atribuiu migalhas, consigo perceber que nunca pertenci de fato a outra classe. Descobri que, se vc não nasceu em berço esplêndido, não basta conquistar a ascensão social, é preciso se enquadrar para se manter nessa classe. E o preço disso é aceitar a meritocracia!!
Au revoir, mes amours, mas isso não cola pra mim.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Coragem?


Sabe aquele dia que vc acorda com vontade de rasgar a barba?
Mas cadê coragem?
Sabe aquele dia que vc levanta com vontade de raspar a sobrancelhas?
Mas cadê coragem?
Aquele dia que vc quer tirar todos os pelos da sua cabeça?
E pintar a cara de preto e se lambuzar de tinta colorida?
Mas cadê CORAGEM?
E a vontade de sair pelado na rua
E querer mandar todo mundo tomar no cu?
Coragem? Cadê você?
E a vontade de botar fogo nos livros
e queimar tudo junto com as estantes tombadas?
Coragem?
Imagina a delícia que seria atirar na privada
essa merda de computador!
Queria mostrar o dedo do meio pros defensores da língua!
Queria mostrar a língua pras hienas carniceiras
que rondam as minhas derrotas!
Mas e a coragem?
A liberdade é submissa à coragem,
que é submissa à autoridade,
que é submissa ao invisível dos padrões naturalizados.
Meu recalque é a falta de coragem.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Ciranda da angústia





Resistir e resistir
e existir e desistir

Não sei de onde vem,
se é ela quem desencadeia...
se é ela desencadeada...

Quem é o agente?
Nós, a gente.
Ou a ausência disso:
sós, doente.

É um acúmulo, apertado:
nós... que entopem, entalam.

ela engendra a febre!
sangue que não corre...
escorre
pelo vácuo dos tabus

Pois não. É um delírio!
Intoxicação:
que se cala com a ação.

Veneno que dá nela.
Primeiro mal de corpo
Depois humor parco.

Efeito rarefeito
filho de um feitiço
um reboliço indefinido:
onde está a ponta?
o começo e o fim?

Não sei de onde vem,
se é ela quem desencadeia...
se é ela desencadeada...

resta um peito estreito
angosto
sem cantos
e sem ângulos
resumido na moléstia
da angústia sufocante.

Resistir e desistir

Existir e resistir.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

El árbol-yo



A veces
me siento como
ese árbol
bajo el frío
de un día acálido
de los más quemantes
e intrépidos fríos

cuyas hojas maduras
y venideras
tiritan conjuntamente

El viento solo sabe producir
un movimiento gris

Soy como ese árbol resequido
guardando recuerdos
de tiempos cercanos
hojas viejas verdes y amarillentas

Soy como ese árbol sereno
esperando en flor
que salgan sus nuevos colores

Soy como ese árbol entremezclado
dudando y creyendo
en un plumaje
de veras ambivalente

Soy ese árbol
medio borroso
medio yo mismo

Soy lo que se ve
aunque las raíces
nunca se las
voy a lucir

Nada




Assim como na balada
entoada por repetidas noites:
Eu não tenho nada.
Sou eu que não tenho 
Nada, nada, nada.



Você tem algo...
talvez não seja tudo
mas é uma parte

Eu, contrariamente,
Não tenho nada.
Sou eu que não tenho
Nada, nada, nada.

Talvez você não tenha
a memória daquele entusiasmo.
Talvez foi melhor esquecer
Para renovar

Em vez de nada,
tenho a memória
que você anda fazendo questão
de esquecer.

A renovação te deu
uma parte.
Não renovei,
tenho nada.
Continuo não tendo nada
Nada, nada, nada.

Um nada tão vazio.
Um vazio tão com cara de nada.
Lembranças vazias,
cheia de um nada doloroso.

Asi nomás

E enquanto eu bebo
imagino poesia com sua imagem
Reconheço seu rosto em cada rosto novo.

Os olhos repuxados, pequenos
excesso de pálpebra.

Depois uma barba meio espessa
maxilar projetado

Um parrudo infantil
uma contradição pueril

Então imagino um par de nádegas
somente revelados na intimidade
Desgastado pelo cotidiano.

Meio caídos
meio duros
típico da raça branca jovem

No fim
a noite acaba
e o re-conhecimento também,
Eis um estado de recordação
Eis um coração fragilizado
Impossibilitado de recomeçar.

É, pois então, que
o dúbio plano de fundo
antecipa a realidade:

Fui vencida pelo fetiche da masculinidade.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Identidades

Em 2014 faz 10 anos que sai da casa da família, sai da cidadezinha e fui morar só, num lugar muito distante de onde me criei. Antes disso, eu já tinha morado fora da casa da minha mãe, mas era diferente, porque ainda estava na tutela de parentes. Então, digamos por assim dizer que, no ano que vem eu comemoro 10 anos da minha completa emancipação.
Quero fazer uma reflexão sobre o fluxo das minhas identidades ao longo desse tempo.
Lembro de ter sido uma criança e um adolescente bastante protocolar: bom aluno e bom menino. Apesar de ser diferente e ter sentido a angústia típica da idade, posso dizer que não tenho consciência de ter sofrido bulliyng. Às vezes, eu penso que a minha vontade de inclusão, a vontade de estar incluído na classe supremacista era tamanha que isso me cegava para as possíveis opressões adolescentes. Naquela época, eu nem sabia o que significava opressão. Eu gostava de me identificar como o garoto exemplar, aquele que agrada a todos, embora não tivesse a mínima consciência sobre esta identidade.
Como a identidade não depende só da gente, mas também do outro, os outros me identificavam, já no colegial, como um nerd. Realmente, eu quase não saia de casa e gostava muito de estudar e isso foi o suficiente para me render o título. Mas, antes, outras identidades também me constituíam. Algumas eram herdadas, já que meu pai era músico e estrangeiro, acabei crescendo acreditando naquela baboseira de que meu irmão e eu tínhamos o dom para a música. Cresci me identificando como dotado para esse dom. Como tinha a pele morena e o cabelo liso e preto, também me taxaram de índio, de filho de índio, mesmo meu pai não sendo indígena. Meu pai já era um mestiço. Por parte de mãe, eu herdei o sobrenome marcado. Sabe como é cidade pequena de interior: já se nasce com uma estrela na testa. Eu era o primogênito dos Jiquilin, significasse o que isso significasse. Até então, minha sexualidade não era parte significativa da minha identidade. Também não tinha consciência de nada disso, eu apenas reproduzia o padrão, com todo o recalcamento necessário para ser um deles.


Em 2004, quando deixei pra trás tudo isso, abandonei também todas essas identidades. Mas a coisa também não foi um oba-oba. Não fechei uma porta e sai correndo e gritando do outro lado: _ Liberdade, liberdade, agora sou o que quero ser.
A maturidade fez parte desses anos. Cheguei como um ser acuado e perdido. E a consciência das coisas foi se despertando aos poucos. Foi uma transição bastante lenta na minha vida. O ranço das identidades passadas foi bom em alguns sentidos: continuei sendo um bom menino protocolar e com isso me graduei no tempo certo, tirei boas notas, viajei, enfim, colhi os frutos que a meritocracia queria me dar. Mas foi só isso.
Por outro lado, eu já não era mais índio e nem músico. Para alguns professores, assuntos relativos à música não eram endereçados mais a mim. Eu tinha me tornado paraguaio: virei um especialista em guarani, mesmo não sendo nativo nessa língua. Aproveitei a onda e estudei bastante essa língua.
Longe de parentes, longe de expectativas dos íntimos e dos outros, questionar a sexualidade foi se tornando algo comum. Cada vez mais fui tornando isso mais evidente em mim, até eu chegar num ponto em que questionar o status quo se tornou a coisa mais importante do meu desenvolvimento intelectual.
Nesses 10 anos percebo como a relação das identidades atribuídas determina os passos futuros. Acho que é mais ou menos assim que consigo me mover numa briga constante entre o que me assujeita e o meu lugar de autoria da vida. Como reproduzir e mover? Como se auto conduzir e deixar de ser uma enxurrada?

Tenho engatilhado novas identidades, pontos de ancoragem, sobre as quais pretendo voltar daqui 10 anos e notar como frutificaram. 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Escritura

Eu preciso escrever para dormir. Escrever é a minha pílula de Morfeu. Sem a ponta dos dedos, sem o teclado, as pálpebras não fecham. Preciso desentupir a cabeça, anuviar com as palavras. Hoje eu não encontro o caminho das letras. Está difícil escrever. Talvez eu não tenha conseguido me despir diante do espelho. Talvez esteja envergonhado do meu nu: uma vergonha, ao mesmo tempo, de mim mesmo e dos outros. Escrever exige um outro, nem que seja eu mesmo. E, nesse mundo de vaidade, não quero mostrar minha carne para ninguém. Sou fruto, não sem consciência, do consumo. E neste momento me sinto infeliz por não ser consumível. Escrever não bastará.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Desistir?

É muito difícil encontrar companhia…  à medida que o tempo vai passando,o crivo vai se estreitando, porque agora já não me sacio com as frivolidades juvenis. Preciso de sal: muitos são os corpos salgados, poucas são as mentes. O tempo avança e me distancio. Minhas projeções são cada vez mais intensas, porque já é raro encontrar uma paixão percuciente.
Mas as projeções passam, as situações me fazem cair na real.
E depois, tudo fica claro.
Desistir é mais complicado ainda, porque o curso dos livres-arbítrios pode jamais se entrelaçar, apesar de tantas semelhanças. Mais uma vez, os fatídicos azares da vida podem afastar para muito distante, talvez para o mar do esquecimento, a companhia que lhe supre (física e mentalmente).
Um “sim”, hoje, repercutirá em todo um trajeto, longo, muito longo.... que talvez um “não” pudesse abreviar sepulturalmente.
Eis um jogo de escolhas complexo como o de encontrar companhia e como o de desistir delas.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Oração da liberdade


Oh, coisa divina a que alguns chamam Deus, e a que eu prefiro chamar mente, fazei-me resistir aos desejos que não são meus. Fazei-me resistir a essa força que é anterior a mim e que permanecerá inabalável posterior à minha existência. Ajudai-me não só a entender os caminhos que me subjetivam, mas também a discernir quais deles são correntes da coerção das massas e quais são as vontades do meu eu latente. Dai-me força para viver de acordo com a liberdade. E que a minha felicidade esteja dentro e não fora. Elevai meu espírito ao mais alto dos objetivos humanos de modo que todos os sofrimentos se tornem os mais espúrios. Afastai-me da mesquinhez, livrai-me da vontade de propriedade. Iluminai meu coração para que eu entenda que nada me pertence. Daí-me serenidade e mais nada para que possa compreender, relativizar e amar sempre.
Que seja desse jeito.

terça-feira, 28 de junho de 2011

O problema é o feminino

O machismo está aí batendo em nossas casas há muitos séculos. A adoração ao masculino não é uma invenção da nossa sociedade e nem se originou no nosso tempo. É difícil precisar como se deu a primeira manifestação machista. Há os que digam que essa forma de poder existe desde que o homem das cavernas começou a puxar a mulher pelos cabelos. Mas não importa. O machismo é algo cultural, isso quer dizer que ele foi criado pelo homem, ainda que a retrógrada psicologia evolucionista apregoe que se trata da própria biologia humana. Por ser algo cultural, ele funciona como um efeito catraca: o homem o aprendeu em alguma etapa de sua filogênese e o foi aperfeiçoando (se é que podemos dizer que o machismo é algo perfeito). Da Grécia Antiga, da qual legamos muito da cultura, podemos ler tragédias e comédias de autores muito influentes que menosprezam a mulher, que a inferiorizam. A misoginia, cujo próprio termo é grego, é o ódio pelo feminino.


Com o passar do tempo, o machismo vai sendo transmitido culturalmente para as novas gerações e vai se modificando.

A análise que faço do machismo hoje no Brasil, e talvez na América latina, é de que ele é um tipo de misoginia. O machismo nosso hoje é uma aversão pelo feminino. Odiamos o feminino na medida em que exaltamos o masculino. Aprendemos que ser masculino é mais importante que ser feminino. Ser masculino é prestigioso. Também criamos toda uma concepção do que é ser feminino. Ser feminino é ser sentimental, é ser frágil, é ser sensível, entre muitas outras coisas. Portanto, ser feminino não é apenas possuir uma vagina. Mas quem possui uma vagina sofre em dobro, porque se espera dessas pessoas um comportamento feminino.

Essa forma de machismo se manifesta por todos os lados e inclusive dentro dos movimentos de minorias. A lesbofobia, que é a aversão por lésbicas, é um exemplo desses. Muitos gays (do sexo masculino) têm horror a lésbicas. Mas essa fobia é por causa do elemento “feminino” advinto do estereótipo daquela que possui uma vagina. No fundo, o lesbofóbico é misógino, porque tem horror ao feminino.

O gay afeminado também vai sofrer desse preconceito dentro do próprio coletivo do qual faz parte, porque os gays não afeminados estão inseridos nessa lógica do machismo. Quase todo mundo odeia o feminino.

Muitos queimarão as bandeiras cor-de-rosa. Por quê? Porque o rosa representa o... feminino.

Mas o engraçado disso tudo é que os gays percebem que eles são oprimidos pela sociedade heteronormativa. Os gays percebem que o machismo os oprime. Mas eles não percebem que até eles mesmo são opressores quando lhes toca. O machismo só é percebido quando se infringe uma norma heterossexual: a de que homens se relacionam com mulheres. Contudo, o machismo não é percebido quando ele infringe uma conduta homonormativa: o de que gays devem ser masculinos.

Os gays percebem como lhes pesa uma macrofísica do poder, mas não percebem que eles instauram uma microfísica desse mesmo poder.

Recentemente saiu um vídeo chamado “Não gosto de meninos”. Eu, particularmente, não gostei muito dele, porque apesar de ser muito instrutivo, e por isso tem uma mensagem vendável, ele demonstra essa microfísica do poder. Lá pelas tantas, um dos entrevistados diz: eu achava que ser gay era ter uma postura assim (e nesse “assim”, você entende “ser bixinha”). Sabe, tudo bem de você não gostar de comportamentos afeminados. Mas, por favor, não me venha recriminar o “feminino”.

Exatamente pelo ódio ao feminino ser uma tradição e exatamente por ser um construto social, é que podemos combater esse tipo de preconceito. Não odeie as travestis, não odeie as transexuais ou os transgêneros. Acredito que essas categorias, umas que transitam outras que transgridem as fronteiras entre o masculino e o feminino, deveriam ser as mais prestigiadas dentro da cultura gay. Porque, na maior das instâncias, são elas que derrubam e desfazem as hierarquias entre masculino e feminino e permitem que você, gay masculino, não tenha medo do armário. Por outro lado, não adianta você sair do armário, se você carrega um guarda-roupas de preconceito contra o feminino.

Quando a gente começar a vencer essas barreiras dentro do grupo é, então, que poderemos falar de combate PLENO ao machismo. Reage, galera, machismo é violência.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Meu nome fala

Alguns defendem que os nomes revelam muito sobre as coisas a que eles rotulam. Outros, contudo, são da opinião de que o nome é arbitrário a coisa. Eis uma polêmica antiga, antiga como o diálogo de Crátilo, escrito por Platão.
Realmente sabemos que há muita arbitrariedade no nome das coisas. Por que “cadeira” se chama “cadeira” em português e “silla” em espanhol? Se houvesse um motivo para as coisas se chamarem como elas se chamam, então, não haveria línguas variadas e uma língua mesma não teria variações.
Meu nome, por exemplo, não guarda nenhuma essência, uma característica própria, uma dieguice, que me faz chamar assim. Talvez o sobrenome sim, porque já vem caracterizando todos os meus ancestrais e, no mínimo, diz sobre minha genética. Já foi carregado de semântica histórica.
No entanto, coincidentemente, meu nome consegue falar muito sobre mim. Se o analisarmos cuidadosamente, veremos que a arbitrariedade cedeu passo a uma motivação. No meu caso, pura coincidência? Não, prefiro considerá-la como uma apropriação!
Vamos começar pelos sobrenomes:
Ramirez, este vem marcar minha ascendência hispânica, alguma vez perdida na colonização americana. Acreditamos sempre que somos filhos de quem somos. Cremos que o nome é a nossa origem.
Ledo engano!
Quantos outros sobrenomes não tiveram de ser apagados para que Ramirez vigorasse? Quantas mulheres índias ou brancas silenciaram a transmissão de seus sobrenomes?
Ramirez, por exemplo, pertence ao padrasto do meu pai. Desavenças familiares fizeram com que os Forcados, os meus geneticamente aparentados, não legassem seu rótulo à geração seguinte. O nome do homem deixou de ser transmitido ao meu pai. Menos machismo? Pelo contrário, mais machismo cultural: o pai não assume sua cria e outro homem nomeia a cria da desamparada.
Ramirez, porém, é um nome que, embora não fale da minha genética, conta a história da minha família. Faz parte da minha identidade e me faz ser paraguaio. Ramirez, no espanhol paraguaio, é tão frequente quanto aos Silva, no português brasileiro. É um nome que representa o que há de mais comum no povo paraguaio. De certo, é revelador quanto ao meu processo identitário.
Agora vamos a Jiquilin. Realmente Jiquilin é o meu sobrenome. Não se trata de apelido, embora muitos pensem assim. Também não é um nome indígena e nem é paraguaio. Jiquilin é o que eu considero um verdadeiro nome brasileiro. Criado aqui, fruto de miscigenações, cuja história obscura tento decifrar.
Conta-se que Jiquilin é um nome italiano. Meus avós inclusive costumavam dizer que é um nome oriundo da Calábria. Tenho minhas dúvidas. A terminação “in” é freqüente nos sobrenomes franceses. O professor Ilari uma vez me disse que na época da chegada dos italianos, ou seja, na época da enorme recessão europeia, era comum que muitos franceses migrassem à Itália e de lá viessem ao Brasil.
Também não sei se Jiquilin tem algo de francês. Sei que com minha intuição linguística posso tentar reconstituir esse nome.
A começar pela confusão entre fala e escrita.
Suponhamos que o acento ainda seja oxítono, então podemos defender que a vogal “i” da sílaba tônica tivesse sido no passado um “i” mesmo.
Mas, os outros dois “i”s poderiam ter se originado de um “e”. Vocês se lembram que em quase todo o Brasil, pronunciamos como “i” quase todos os “e”s postônicos e alguns pretônicos? Tenho certeza de que o escrivão, o que primeiro cometeu esse lapso, muito provavelmente deixou-se guiar pela pronúncia já abrasileirada do sobrenome.
Então, já temos no mínimo alguns candidatos: Jiquilin, Jequelin, Jequilin, Jiquelin.
Quanto à escrita, há de considerar-se que a letra “j” não existe em italiano (existe sua irmã “g”, atualmente pronunciada como uma africada), isso tudo se o sobrenome for italiano.  Se assim for, o “qu” do português tem de dar lugar ao “ch” italiano. Assim, as possibilidades escritas para o nome remoto seriam: Gichilin, Gechelin, Gechilin ou Gichelin.
Também devo considerar que o contexto de final de palavra propicia em muito as erosões fonéticas. E, então, por que não considerar a existência de mais uma sílaba, cujo núcleo é preenchido por um “i”? Soaria mais italiano, no mínimo. Agora, as possibilidades do sobrenome ancestral se duplicariam: Gichilin, Gechelin, Gechilin, Gichelin, ou ainda, Gichilinni, Gechelinni, Gechilinni, Gichelinni.
O santo Google aponta a existência de algumas dessas formas, mas eu prefiro não conhecer esse passado. É uma história que pouco importa para a formação do meu sujeito. Atualmente, os Jiquilin somos bem poucos, muito raros, em vias de extinção. Só há minha família, de 4 ou 5 ramos, cujas portadoras do nome são majoritariamente mulheres da geração da minha avó e da minha mãe, as quais não transmitirão o sobrenome para seus filhos, ou, quando passado aos filhos, estão fadados ao sepultamento, já que não figuram como o nome mais importante. O do macho é o mais importante.
Gosto de ser raro. Gosto também da confusão que as pessoas fazem com o meu lado paraguaio. Há uma palavra em espanhol que muito se parece com Jiquilin, é “Chiquilín”, traduzido ao português como “pequenino”. Somente comigo essa brincadeira funciona, já que sou o único Jiquilin nativamente (o que quer que seja o significado de “nativo”) hispano-falante. Dessa vez, o Hermógenes, aquele personagem do Platão, teria razão: sou um pequenino e meu nome fala isso sobre mim.
Atenção, o mais interessante é que o meu primeiro nome conta muito sobre mim. Sou Diego. O dono de dois egos. Di-ego.
Acho que não teria nome melhor que pudesse deixar tão evidente essa minha identidade que se faz no interstício de dois mundos.
Sou geminiano, o signo das duas faces. Talvez uma para cada mundo. Sou binacional, uma para cada ego. Sou bilíngüe, uma para cada eu. Realmente devo reconhecer que guardo dentro de mim dois pólos.
No entanto, mais do que estes pólos, transito continua e ininterruptamente entre eles. A minha identidade é essa: a da inquietude, a da infinito-culturalidade. Entre 0 e 1, há um mar infinito de possibilidades.
Com tudo isso, não defendo a não arbitrariedade do signo. Demonstro como tenho a felicidade de que meu nome fale sobre mim. De como o tempo faz a gente dar significados para os signos. Sou único. Meu nome é único. E a minha história é a que eu quero lembrar!

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

primeiras impressões Paraguai (nem tão primeiras)




Sou invadido por um sentimento muito paradoxal, quando venho ao Paraguai. Gosto muito da cultura cosmopolita, da sofisticação, do requinte, e o Paraguai é um país em que raramente estas características ocorrem. A capital Assunção pode até oferecer uma centelha disso, mas nada se compara ao mundo moderno das capitais europeias ou mesmo da grande São Paulo. E, então, penso se consigo ficar longe dessa cultura, com a qual fui me acostumando ao longo dos últimos anos.
Por outro lado, no Paraguai, tenho certeza de que posso encontrar das pessoas mais amáveis e doces por aí nesse mundo.
Desse jeito, vejo minha cultura posta em xeque. Sinto-me como o filho interiorano que cresceu e se mandou para a capital. Ao mesmo tempo que me dá vontade de ir embora viver a cidade grande e mergulhar a fundo no ambiente jovem da universidade brasileira, tenho também a imensa vontade de permanecer mais tempo, sentir todo o carinho que os paraguaios dispendem a mim.
Penso se já não é hora de retribuir à sociedade o conhecimento que dura e afavelmente adquiri. Na verdade, vejo esta oportunidade de ser leitor como um momento de transição entre minha vida de aluno e a de professor. Sem um limite muito estanque, sempre na sombra da ambiguidade: ora pendendo para um lado, ora para outro.
Não consigo ter um olhar muito exotizante do Paraguai, porque parte da minha identidade pertence a este país também, assim, acabo não vendo muitas das diferenças culturais que um brasileiro "puro" talvez veria.
Talvez o calor exacerbado é um dos primeiros fatores que chamariam a atenção do paulistano, ainda que ele viesse de Ribeirão Preto. No dia em que cheguei, fazia um calor que não sentia há muito tempo.

O segundo ponto são os pernilongos. É preciso dormir de mosqueteiro, senão você é engolido pelos bichinhos. Na minha primeira noite, esqueci do repelente e do mosqueteiro, e pra piorar, deixei a janela do
meu quarto aberta. Resultado: amanhaci inchado pelas picadas. Mas essa não é a primeira vez que me acontece e nem me incomoda tanto o fato. Minha mãe conta que quando eu era bebê, uma vez movi o véu do berço e fui devorado pelos mosquitos.
Vacinado de pernilongos já estou!
O terceiro ponto chamativo, e este devo confessar que também estranho muito, é a paisagem do país. O terreno é completamente plano e a vegetação, se não estou enganado, parece ser Mata Atlântica. No meio dela, não há uma paisagem urbana. Com exceção de algumas cidades, o Paraguai é extremamente rural. Diria até que as cidades têm um aspecto peculiar de sujeira. Há muita poeira. E muitos municípios seque são asfaltados. Falta infraestrutura básica. Não há saneamento. Este é o cenário oposto daquele que eu gosto, conforme descrevia no princípio deste relato.
As estradas são bem conservadas, no entanto. O país é cortado por grandes rodovias, que, por sinal, comunicam muito bem todas as regiões. Quase não há pedágios. E em algumas rodovias quase não há movimento também.
Quando o ônibus pára em algum ponto, logo ele é abarratado por vendedores ambulantes, quer no interior do veículo quer do lado de fora dele. Se você olhar pelo vidro, seguramente vai ser alvo de algum vendedor afoito por fazer você comprar. O que ele vendem são geralmente alimentos. Comida típica paraguaia: empanada, chipa. Também vendem biscoitos e bolachas, refrigerantes, água e chicletes. Está tudo à mão, por um preço muito baixo.
A população é bastante pobre. E nisso também há muita diferença com o Brasil. Diferença na quantidade. Parece que todo mundo é pedinte, parece que todo mundo é vendedor de semáforo.
Vejo muita gente usando roupa velha e rasgada. E isso não é vergonha por aqui, é praticamente a regra. Use sua roupa até ela acabar.

E então tenho que falar um pouco do cenário urbano: as cidades parecem que pararam no tempo. O design das lojas, as fachadas e a arquitetura parecem ser bem antigas. Em geral, os letreiros das lojas são feitos de latão, o que confere um ar de ferrugem aos lugares. Os paraguaios não economizam nos anúncios, a poluição visual é tremenda. É o lado feio e sem glamour do capitalismo. À mercê do sistema e com a barriga vazia, a solução é vender qualquer coisa em qualquer lugar.



Penso seriamente como um brasileiro reageria nma situação dessa. A biagem da capital até Concepción, município localizado no centro norte do país, levou 10 horas. O ônibus que tomei estava num estado extremamente precário. Prefiro não reclamar e nem descrever. Só devo mencionar um episódio da viagem que serve para reforçar o caráter amistoso dos paraguaios. Lá pelas tantas, o pneu do veículo explodiu, no meio de uma rodovia deserta. Mas em menos de meia hora estava tudo arrumado, graças à ajuda das raras conduções que por ali passavam.


Até agora tenho falado do Paraguaidos pobres, ou seja, do Paraguai de mais de 80% da população. Mas há um outro Paraguai muito diferente: o Paraguai dos ricos. Tive contato com esta gente poucas vezes. Venho de uma família de artistas e ser artista é saber se relacionar, é saber ser filho de mecenas. Na minha primeira noite em Concepción entrei mais uma vez em contato com esta trupe. Participei de uma cerimômia de gala na qual esteve presente o governador do Estado, o Reitor da Universidade, o Embaixador do Brasil, o Cônsul paraguaio no Peru, o vice Cônsul e uma delegação imensa composta de esposas "ingênuas" (para não dizer alienadas) e madames.
Enfim pude saber qual seria minha missão em Concepción: ajudar a fundar um curso de formação em língua portuguesa.
A Universidade Nacional de Concepción é composta de quatro a cinco casinhas, muito longe de ser qualquer das universidades brasileiras. A história do lugar é muito interessante (ela existe há menos de quatro anos). O terreno era antigo território dos militares!



Fiquei muito contente em saber que havia sido convocado para participar da construção do ambiente.
Toda aquela cerimônia era para marcar a assinatura de um acordo de cooperação entre o governo brasileiro e o estado de Concepción, mas no sentido de que o Brasil forneceria ajuda ao país vizinho. Minha presença era o símbolo da concretização daquele acordo. Cheguei a ter o nome mencionado várias vezes pelas autoridades e fui convocado a discursar para a plateia (fui pego de surpresa). No fundo, sinto muito nojinho dessa postura paternalista do Brasil. Chega a soar como algo de hipocrisia, que não chega a remediar os estragos da Guerra da Tríplice Aliança. Por outro lado, sinto-me encorajado tanto porque estarei participando de um capítulo importante no desenvolvivmento cultural e social desse lugar como também porque senti de perto o calor humano das pessoas ávidas em aprender e em mudar a situação em que se encontram.
Creio que meu sentimento paradoxal aos poucos irá se amenizando, porque o embate das correntes é bem propenso para um lado. já que se trata de uma luta material contra uma luta humana. O grande problema é que não tenho toda essa maturidade em abrir mão de uma cultura do consumo e da vaidade.
Estou no Paraguai também para me conhecer mais. A falta de amigos e da família, com certeza, vai me proporcionar momentos muito interessantes de reflexão. Acredito que estarei muito mais enfocado nos meus objetivos! Esperemos e veremos!