Alguns defendem que os nomes revelam muito sobre as coisas a que eles rotulam. Outros, contudo, são da opinião de que o nome é arbitrário a coisa. Eis uma polêmica antiga, antiga como o diálogo de Crátilo, escrito por Platão.
Realmente sabemos que há muita arbitrariedade no nome das coisas. Por que “cadeira” se chama “cadeira” em português e “silla” em espanhol? Se houvesse um motivo para as coisas se chamarem como elas se chamam, então, não haveria línguas variadas e uma língua mesma não teria variações.
Meu nome, por exemplo, não guarda nenhuma essência, uma característica própria, uma dieguice, que me faz chamar assim. Talvez o sobrenome sim, porque já vem caracterizando todos os meus ancestrais e, no mínimo, diz sobre minha genética. Já foi carregado de semântica histórica.
No entanto, coincidentemente, meu nome consegue falar muito sobre mim. Se o analisarmos cuidadosamente, veremos que a arbitrariedade cedeu passo a uma motivação. No meu caso, pura coincidência? Não, prefiro considerá-la como uma apropriação!
Vamos começar pelos sobrenomes:
Ramirez, este vem marcar minha ascendência hispânica, alguma vez perdida na colonização americana. Acreditamos sempre que somos filhos de quem somos. Cremos que o nome é a nossa origem.
Ledo engano!
Quantos outros sobrenomes não tiveram de ser apagados para que Ramirez vigorasse? Quantas mulheres índias ou brancas silenciaram a transmissão de seus sobrenomes?
Ramirez, por exemplo, pertence ao padrasto do meu pai. Desavenças familiares fizeram com que os Forcados, os meus geneticamente aparentados, não legassem seu rótulo à geração seguinte. O nome do homem deixou de ser transmitido ao meu pai. Menos machismo? Pelo contrário, mais machismo cultural: o pai não assume sua cria e outro homem nomeia a cria da desamparada.
Ramirez, porém, é um nome que, embora não fale da minha genética, conta a história da minha família. Faz parte da minha identidade e me faz ser paraguaio. Ramirez, no espanhol paraguaio, é tão frequente quanto aos Silva, no português brasileiro. É um nome que representa o que há de mais comum no povo paraguaio. De certo, é revelador quanto ao meu processo identitário.
Agora vamos a Jiquilin. Realmente Jiquilin é o meu sobrenome. Não se trata de apelido, embora muitos pensem assim. Também não é um nome indígena e nem é paraguaio. Jiquilin é o que eu considero um verdadeiro nome brasileiro. Criado aqui, fruto de miscigenações, cuja história obscura tento decifrar.
Conta-se que Jiquilin é um nome italiano. Meus avós inclusive costumavam dizer que é um nome oriundo da Calábria. Tenho minhas dúvidas. A terminação “in” é freqüente nos sobrenomes franceses. O professor Ilari uma vez me disse que na época da chegada dos italianos, ou seja, na época da enorme recessão europeia, era comum que muitos franceses migrassem à Itália e de lá viessem ao Brasil.
Também não sei se Jiquilin tem algo de francês. Sei que com minha intuição linguística posso tentar reconstituir esse nome.
A começar pela confusão entre fala e escrita.
Suponhamos que o acento ainda seja oxítono, então podemos defender que a vogal “i” da sílaba tônica tivesse sido no passado um “i” mesmo.
Mas, os outros dois “i”s poderiam ter se originado de um “e”. Vocês se lembram que em quase todo o Brasil, pronunciamos como “i” quase todos os “e”s postônicos e alguns pretônicos? Tenho certeza de que o escrivão, o que primeiro cometeu esse lapso, muito provavelmente deixou-se guiar pela pronúncia já abrasileirada do sobrenome.
Então, já temos no mínimo alguns candidatos: Jiquilin, Jequelin, Jequilin, Jiquelin.
Quanto à escrita, há de considerar-se que a letra “j” não existe em italiano (existe sua irmã “g”, atualmente pronunciada como uma africada), isso tudo se o sobrenome for italiano. Se assim for, o “qu” do português tem de dar lugar ao “ch” italiano. Assim, as possibilidades escritas para o nome remoto seriam: Gichilin, Gechelin, Gechilin ou Gichelin.
Também devo considerar que o contexto de final de palavra propicia em muito as erosões fonéticas. E, então, por que não considerar a existência de mais uma sílaba, cujo núcleo é preenchido por um “i”? Soaria mais italiano, no mínimo. Agora, as possibilidades do sobrenome ancestral se duplicariam: Gichilin, Gechelin, Gechilin, Gichelin, ou ainda, Gichilinni, Gechelinni, Gechilinni, Gichelinni.
O santo Google aponta a existência de algumas dessas formas, mas eu prefiro não conhecer esse passado. É uma história que pouco importa para a formação do meu sujeito. Atualmente, os Jiquilin somos bem poucos, muito raros, em vias de extinção. Só há minha família, de 4 ou 5 ramos, cujas portadoras do nome são majoritariamente mulheres da geração da minha avó e da minha mãe, as quais não transmitirão o sobrenome para seus filhos, ou, quando passado aos filhos, estão fadados ao sepultamento, já que não figuram como o nome mais importante. O do macho é o mais importante.
Gosto de ser raro. Gosto também da confusão que as pessoas fazem com o meu lado paraguaio. Há uma palavra em espanhol que muito se parece com Jiquilin, é “Chiquilín”, traduzido ao português como “pequenino”. Somente comigo essa brincadeira funciona, já que sou o único Jiquilin nativamente (o que quer que seja o significado de “nativo”) hispano-falante. Dessa vez, o Hermógenes, aquele personagem do Platão, teria razão: sou um pequenino e meu nome fala isso sobre mim.
Atenção, o mais interessante é que o meu primeiro nome conta muito sobre mim. Sou Diego. O dono de dois egos. Di-ego.
Acho que não teria nome melhor que pudesse deixar tão evidente essa minha identidade que se faz no interstício de dois mundos.
Sou geminiano, o signo das duas faces. Talvez uma para cada mundo. Sou binacional, uma para cada ego. Sou bilíngüe, uma para cada eu. Realmente devo reconhecer que guardo dentro de mim dois pólos.
No entanto, mais do que estes pólos, transito continua e ininterruptamente entre eles. A minha identidade é essa: a da inquietude, a da infinito-culturalidade. Entre 0 e 1, há um mar infinito de possibilidades.
Com tudo isso, não defendo a não arbitrariedade do signo. Demonstro como tenho a felicidade de que meu nome fale sobre mim. De como o tempo faz a gente dar significados para os signos. Sou único. Meu nome é único. E a minha história é a que eu quero lembrar!