Em 2014 faz
10 anos que sai da casa da família, sai da cidadezinha e fui morar só, num lugar
muito distante de onde me criei. Antes disso, eu já tinha morado fora da casa
da minha mãe, mas era diferente, porque ainda estava na tutela de parentes.
Então, digamos por assim dizer que, no ano que vem eu comemoro 10 anos da minha
completa emancipação.
Quero fazer
uma reflexão sobre o fluxo das minhas identidades ao longo desse tempo.
Lembro de
ter sido uma criança e um adolescente bastante protocolar: bom aluno e bom
menino. Apesar de ser diferente e ter sentido a angústia típica da idade, posso
dizer que não tenho consciência de ter sofrido bulliyng. Às vezes, eu penso que
a minha vontade de inclusão, a vontade de estar incluído na classe supremacista
era tamanha que isso me cegava para as possíveis opressões adolescentes.
Naquela época, eu nem sabia o que significava opressão. Eu gostava de me
identificar como o garoto exemplar, aquele que agrada a todos, embora não
tivesse a mínima consciência sobre esta identidade.
Como a
identidade não depende só da gente, mas também do outro, os outros me
identificavam, já no colegial, como um nerd. Realmente, eu quase não saia de
casa e gostava muito de estudar e isso foi o suficiente para me render o título.
Mas, antes, outras identidades também me constituíam. Algumas eram herdadas, já
que meu pai era músico e estrangeiro, acabei crescendo acreditando naquela
baboseira de que meu irmão e eu tínhamos o dom para a música. Cresci me
identificando como dotado para esse dom. Como tinha a pele morena e o cabelo
liso e preto, também me taxaram de índio, de filho de índio, mesmo meu pai não
sendo indígena. Meu pai já era um mestiço. Por parte de mãe, eu herdei o
sobrenome marcado. Sabe como é cidade pequena de interior: já se nasce com uma
estrela na testa. Eu era o primogênito dos Jiquilin, significasse o que isso
significasse. Até então, minha sexualidade não era parte significativa da minha
identidade. Também não tinha consciência de nada disso, eu apenas reproduzia o
padrão, com todo o recalcamento necessário para ser um deles.
Em 2004,
quando deixei pra trás tudo isso, abandonei também todas essas identidades. Mas
a coisa também não foi um oba-oba. Não fechei uma porta e sai correndo e
gritando do outro lado: _ Liberdade, liberdade, agora sou o que quero ser.
A
maturidade fez parte desses anos. Cheguei como um ser acuado e perdido. E a
consciência das coisas foi se despertando aos poucos. Foi uma transição
bastante lenta na minha vida. O ranço das identidades passadas foi bom em
alguns sentidos: continuei sendo um bom menino protocolar e com isso me graduei
no tempo certo, tirei boas notas, viajei, enfim, colhi os frutos que a
meritocracia queria me dar. Mas foi só isso.
Por outro
lado, eu já não era mais índio e nem músico. Para alguns professores, assuntos
relativos à música não eram endereçados mais a mim. Eu tinha me tornado
paraguaio: virei um especialista em guarani, mesmo não sendo nativo nessa
língua. Aproveitei a onda e estudei bastante essa língua.
Longe de
parentes, longe de expectativas dos íntimos e dos outros, questionar a
sexualidade foi se tornando algo comum. Cada vez mais fui tornando isso mais
evidente em mim, até eu chegar num ponto em que questionar o status quo se
tornou a coisa mais importante do meu desenvolvimento intelectual.
Nesses 10
anos percebo como a relação das identidades atribuídas determina os passos
futuros. Acho que é mais ou menos assim que consigo me mover numa briga
constante entre o que me assujeita e o meu lugar de autoria da vida. Como
reproduzir e mover? Como se auto conduzir e deixar de ser uma enxurrada?
Tenho
engatilhado novas identidades, pontos de ancoragem, sobre as quais pretendo
voltar daqui 10 anos e notar como frutificaram.